quinta-feira, 12 de julho de 2018

O assalto

sexta-feira, 13 de julho de 2018

Não era para ser comum e não entendi a calma como tudo aconteceu. Patrícia caminhava com seus cabelos revoltos contra o vento e com um sorriso contido entre a expressão de alegria que moldava seu semblante. Não sonhava com a possibilidade de sofrer com qualquer sentimento que lhe causasse forte tensão àquela altura do campeonato. Revivia em sua mente algum momento de extrema alegria, futricava sua memória; e como todos os que vivem no mundo da lua, não percebia nada do que acontecia ao seu entorno. Uma ideia leva a outra e dirige rumo a um estado de relaxamento. É que sabe, é uma delícia deitar sobre uma nuvem flutuante de algodão e se deixar levar...
Caminhava por uma rua escura e vazia; vadia, sem ao menos perceber-se uma presa fácil, com aquela cara de moça inocente abobada. Parecia uma abóbora no halloween.
Era mais um dia frio e chuvoso de um rigoroso inverno que acometia a planície Goytacá. E Paty havia acabado de ingerir uma dose extra de um êxtase da paixão. Caminhava com suas emoções a flor da pele; se deleitava ao sentir as fortes vibrações que a paixão secreta havia despertado em seu íntimo segregado. O perigo lhe era desejável e fonte de estímulos, fonte de prazer agudo e refinado. Ela não abandonava o perigo e o perigo não poderia jamais abandoná-la. Pensando bem, talvez devesse se abster de olhar através das janelas das quais tinha acabado de perceber um campo vasto e repleto de belas rosas.
Ela caminhava querendo ir e não mais voltar por aquele caminho de dúvidas certas e embaraços constantes. Mas dava seus passos programados e flutuantes sabendo, em seu âmago; inconsciente, que necessitava sentir a ameaça do assalto das emoções. O assalto de emoções incontidas fragmentava sua consciência, sua alma que só queria experienciar, ter algo a saber; mais molas impulsionadoras para divagar sobre seu sentir e pensar.

Ia em direção ao ponto de ônibus onde esperaria uma condução; uma luz ou talvez uma sombra que a levaria a uma realidade distante. Chegou. Foi só o tempo de devagar em seus pensamentos mais um pouco, enquanto via as gotas d'água sendo iluminadas pelos faróis dos carros e percebia o fluxo intenso dos veículos naquela pista principal... Um cara que já estava na chuva, de bike, encostou com uma desculpa muito esfarrapada de que queria se proteger da água que já o havia molhado o suficiente para ter se conformado e seguido em frente até seu destino.
Ele passava como quem não quer nada e olhou duas, três vezes antes de decidir parar para fazer mais uma vítima. Paty o encarou na terceira vez. Infeliz momento, infeliz decisão. Havia se estabelecido ali uma conexão que abriria espaço para um momento turbulento de grande tensão. Sua ousadia ou curiosidade- ainda não sei bem- a domou e tombou. Foi do céu ao inferno e já lamentava essa estadia.
 Era um encapuzado que farejava com um instinto canino as pessoas nas ruas por onde passava. Ele a olhou, pescou o seu olhar e já foi se achegando desastrosamente com uma pergunta irregular:
- Só estou querendo esperar a chuva passar tá? Po, posso ficar aqui?
Fazia a pergunta e  de forma agitada e insegura já abandonava a bicicleta no meio fio. Perguntava como quem sonda o território do medo de sua presa. Ele queria o medo, esperava o horror para estabilizar sua força, para garantir, logo a princípio a sua vitória. Mas ela o mostrou a indiferença:
- Ah! Pode sim, claro. Chega pra cá.
Não esteve nervosa, não aparentemente, ele não podia perceber que tinha medo. Ele, malandramente, veio cheio de papo doce. Só não conseguiu impedir que seu corpo e suas ações não falassem muito sobre si. Estava igual a um lobo querendo devorar sua presa; com seus olhos arregalados cheios de sede e sangue. Ela o recebeu com sutileza e foi gentil. Sagazmente alimentou o papo com aquele homem estranho que lhe era motivo de reboliço interno, para tornar o ambiente menos tenso, no intuito de acalmar seus nervos, inclusive; e os seus sentimentos de medo e raiva antecipada. Ela não queria perder seu aparelho celular pelo qual ainda pagava às prestações.
Depois, o cara esquisito, a perguntou com seus olhos arregalados, perdidos e sedentos, da hora. Sua boca salivava.
Ela disse com sua naturalidade:
- Eu estou sem nada aqui, sem relógio...
Nesse momento ele mostrou muita insatisfação e ficou nervoso, com ar de quem duvida. Ao passo que também nada poderia fazer com aquela fadiga, ou, podia...  mas engoliu a seco enquanto maquinava outra forma de levar alguma vantagem. Parecia estar em abstinência de substância química, estava nervoso e agitado, com seus olhos perdidos e balançar inquieto do corpo e  movimento constante das mãos.
Acendeu um cigarro para esperar melhor e como que querendo pensar em algo mais rapidamente, antes que sua presa fosse para longe de suas garras.  Mas uma van que ia em direção ao centro chegou e raptou-a. Patrícia foi salva pelo gongo.
Subindo na van olhou para trás, lembrou-se de se despedir do jovem rapaz que havia a levado para fazer uma estadia no inferno. O cobrador fez a porta correr, ela pôs um de seus pés no degrau para embarcar no alívio e na paz, quando se virou e perguntou ao capiroto amigavelmente, antes de dizer tchau:
- Qual é o seu nome mesmo?
Por frações de segundos o frio parecia ter congelado o tempo que se arrastava enquanto esperava a resposta da criatura. Foi uma anestesia e um assalto inverso. Fora ele interrompido e arrastado pelo inverso de sua intenção; vagarosamente e  meio que envergonhado respondia a pergunta como que não esperando por tal final.
Seria falta de educação ir sem despedir-se do Satã e de seu rito.

L.L.

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